Quando se fala em mudanças climáticas, é comum imaginar que tudo se resume às emissões de gases de efeito estufa e seus impactos na temperatura global. Durante muito tempo, essa foi, de fato, a principal abordagem adotada pela ciência climática: modelar o clima como um sistema essencialmente físico, com foco na relação entre superfície – atmosfera, seus fluxos de energia, ciclos biogeoquímicos e interações naturais.
Mas o mundo não é feito apenas de física. Ele é feito de sociedades, de decisões políticas, de dinâmicas econômicas, de avanços tecnológicos e de escolhas coletivas que, somadas, moldam a trajetória do planeta. E é exatamente essa visão mais ampla, integrada e realista que começa a ganhar protagonismo nas simulações climáticas modernas.
Esse é um dos temas que atravessam diretamente minha pesquisa de doutorado, desenvolvida no âmbito do Centro de Ciência de Dados e Inteligência Artificial (BI0S). Buscamos não apenas compreender os dados climáticos, mas também interpretá-los à luz das complexas dinâmicas sociais, econômicas e políticas que estruturam o mundo contemporâneo. Afinal, sem entender a sociedade, compreender o clima se torna uma tarefa inevitavelmente limitada.
Por Que o Clima Nunca Foi Apenas Física?
Durante décadas, os modelos climáticos trabalharam basicamente com cenários de emissões. A lógica era direta: quanto mais emitimos, maior será o aquecimento global. Era um raciocínio elegante em sua simplicidade e, até certo ponto, eficiente para comunicar riscos. Mas, na prática, essa abordagem revelou-se também insuficiente.
O problema central era que esses modelos não explicavam como as emissões surgem, de onde elas partem, quais contextos sociais, políticos e econômicos as alimentam. Eles não consideravam, por exemplo, se o mundo estaria no futuro mais cooperativo ou mais fragmentado, mais desigual ou mais sustentável, mais dependente de combustíveis fósseis ou mais acelerado na adoção de energias renováveis. Esse vazio nas explicações não era um detalhe técnico: era uma lacuna estrutural grave!
Foi exatamente para preencher essa lacuna que surgiu uma nova geração de cenários climáticos. Eles passaram a integrar, de forma mais robusta, não só os dados físicos, mas também as trajetórias sociais, econômicas, tecnológicas e políticas. Reconhecendo, finalmente, que o clima é tanto um fenômeno natural quanto um fenômeno social.
Dos RCPs aos SSPs: Uma Evolução Necessária
Se você já leu ou ouviu falar sobre as projeções de aquecimento global que apontam o quanto o planeta pode esquentar nas próximas décadas, é bem provável que tenha se deparado com a sigla RCPs (Representative Concentration Pathways). Publicados nas rodadas anteriores dos relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), os RCPs representavam trajetórias de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, cada uma associada a um determinado nível de aquecimento.
Por exemplo, o famoso RCP 8.5, que se tornou símbolo de um cenário de altíssimo aquecimento, partia da suposição de que as emissões cresceriam de forma praticamente descontrolada até o fim do século. Contudo, havia um detalhe crucial: esses cenários não explicavam como ou por que essas emissões ocorreriam. Eles não diferenciavam se isso seria fruto de uma escolha política, da ausência de avanços tecnológicos, de falhas na governança global ou de outras dinâmicas sociais.
Reconhecendo essa limitação, o IPCC adotou, em seu relatório mais recente (AR6), os chamados SSPs (Shared Socioeconomic Pathways). Eles não substituem os RCPs, mas os complementam, adicionando uma camada fundamental: a dos futuros socioeconômicos plausíveis.
Esses cenários descrevem diferentes futuros possíveis, baseados não apenas em concentrações de gases, mas nas escolhas que a humanidade pode fazer ao longo do século. Entre os principais estão:
- Um mundo sustentável, com menos desigualdade, alta cooperação internacional e forte investimento em tecnologias verdes.
- Um mundo fragmentado, onde prevalecem interesses nacionais, baixa colaboração internacional e aumento das desigualdades.
- Um mundo hiperindustrializado, altamente dependente de combustíveis fósseis, priorizando crescimento econômico imediato em detrimento de preocupações ambientais.
- Além de outros caminhos intermediários, que combinam diferentes graus de desenvolvimento, cooperação e sustentabilidade.
Esses cenários incorporam variáveis como crescimento populacional, avanços tecnológicos, padrões de consumo, urbanização, distribuição de renda, estabilidade política e até aspectos culturais. Eles revelam uma verdade muitas vezes negligenciada: as mudanças climáticas são, em grande medida, o produto de decisões humanas.
O Papel da Inteligência Artificial
Com o aumento exponencial da complexidade nos modelos climáticos, tornou-se inevitável recorrer a outro salto tecnológico: a inteligência artificial e a ciência de dados. Hoje, os modelos climáticos não lidam apenas com variáveis físicas como temperatura, precipitação ou circulação atmosférica. Eles precisam cruzar, em tempo real, informações de múltiplos sistemas como: atmosfera, oceanos, florestas, setores econômicos, cadeias energéticas, agricultura, dinâmica urbana e, sobretudo, comportamento humano.
O volume e a complexidade desses dados são tão gigantescos que os métodos tradicionais, baseados puramente em equações diferenciais e simulações determinísticas, começam a encontrar seus próprios limites. É aqui que a IA se torna indispensável, oferecendo ferramentas capazes de detectar padrões ocultos, reduzir incertezas, criar modelos híbridos (físico-estatísticos) e, sobretudo, antecipar como as interações entre sociedade e clima podem evoluir.
É exatamente nesse contexto que se insere o trabalho desenvolvido no BI0S, onde aplicamos inteligência artificial não apenas para processar dados, mas para responder perguntas cada vez mais sofisticadas. Se antes a questão era quase linear como: “quanto vai aquecer se emitirmos X?”, hoje ela se torna profundamente mais complexa: “que tipo de sociedade estamos construindo, e como essa sociedade retroalimenta — e é retroalimentada — pelas mudanças climáticas?”
O Clima é um Espelho da Sociedade
No fundo, os modelos climáticos modernos refletem uma constatação que, embora pareça óbvia, demorou décadas para ser plenamente incorporada pela ciência: o clima do futuro depende tanto dos ciclos naturais quanto das escolhas humanas.
Elementos como governança internacional, distribuição de riqueza, investimento em tecnologias limpas, organização das cidades e até os valores culturais que norteiam nossas decisões, influenciam as trajetórias climáticas. E mais do que isso: tais escolhas não são neutras. Elas carregam consigo impactos diretos sobre quem serão os mais vulneráveis, quais regiões sofrerão mais, quem terá acesso às soluções e quem ficará à margem.
Ao reconhecer essa interdependência, nossa responsabilidade se amplia de forma dramática. O clima não é algo que simplesmente acontece, como um fenômeno distante e inevitável. Ele é, em grande medida, um reflexo das nossas ações, omissões e prioridades enquanto civilização.
Conclusão: O Futuro Está em Nossas Mãos
Incorporar aspectos sociais, econômicos e políticos aos modelos climáticos não é apenas uma inovação metodológica. É, acima de tudo, um reconhecimento profundo de que a luta contra as mudanças climáticas não é um desafio meramente técnico ou científico. É, antes de tudo, um desafio ético, coletivo e profundamente humano.
O que os dados nos mostram, de forma cada vez mais clara, é que o futuro do clima não está escrito nas linhas de código dos modelos, nem é determinado exclusivamente pelas leis da física. Ele está, sobretudo, nas linhas de decisão das políticas públicas, da governança internacional, da economia global, da cultura, da ciência, da cooperação — ou, infelizmente, da omissão — das sociedades.
Por fim, o grande desafio do nosso tempo não é apenas prever o clima. É decidir que tipo de civilização queremos ser.
Referências
IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change. Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/. Acesso em: 24 jun. 2025.
IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change. Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/. Acesso em: 24 jun. 2025.
VAN VUUREN, D. P. et al. The representative concentration pathways: an overview. Climatic Change, v. 109, p. 5–31, 2011. DOI: https://doi.org/10.1007/s10584-011-0148-z.
O’NEILL, B. C. et al. The roads ahead: Narratives for shared socioeconomic pathways describing world futures in the 21st century. Global Environmental Change, v. 42, p. 169–180, 2017. DOI: https://doi.org/10.1016/j.gloenvcha.2015.01.004.
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