Conteúdo principal Menu principal Rodapé

Saúde materna e mudanças climáticas: danos (in)visíveis

climaterna

POR CAMILA FERREIRA SOARES

Muito se discute sobre as mudanças climáticas e seus efeitos sobre a saúde: mais casos de doenças respiratórias relacionadas à poluição e queimadas; maior circulação de doenças transmitidas por vetores, como dengue e Zika, impulsionadas pelas altas temperaturas; agravamento da insegurança hídrica e alimentar; e impactos na saúde mental após eventos climáticos extremos.

Já sabemos que os impactos ambientais não recaem igualmente sobre todas as populações. Mulheres grávidas e recém-nascidos, em especial de famílias mais pobres, estão entre os mais expostos. Mas será que essa discussão está presente nas agendas políticas e de saúde?

Calor extremo e saúde materna: o que a ciência já sabe (e ainda precisa saber)

Essa relação entre clima e saúde materna e perinatal é pouco debatida no Brasil. No entanto, estudos internacionais já identificaram associações entre clima e saúde materna e perinatal. Estudos mostram que temperaturas extremas, principalmente altas temperaturas, aumentam o risco de partos prematuros, baixo peso ao nascer e até de mortalidade materna. A exposição a altas temperaturas durante a gestação pode desencadear processos inflamatórios e alterações hormonais que afetam o desenvolvimento fetal. 

No Brasil, essa vulnerabilidade é agravada por desigualdades históricas. As gestantes negras, indígenas, periféricas ou que vivem em regiões com baixa cobertura de serviços públicos estão mais expostas aos impactos combinados do clima e da desigualdade.

Mas não é só a temperatura que preocupa. A poluição do ar, em especial o material particulado fino (PM2.5), o dióxido de nitrogênio (NO₂) e o ozônio (O₃), tem sido associada a desfechos adversos como parto prematuro, baixo peso ao nascer e mortalidade neonatal.

Mesmo em níveis considerados “aceitáveis”, a exposição a poluentes pode desencadear inflamações e estresse oxidativo na mãe, afetando a placenta. Há evidências de que partículas poluentes conseguem atravessar a barreira placentária e atingir diretamente o feto.

Um estudo recente no Brasil mostrou diferenças regionais nos efeitos dos poluentes: o PM2.5 teve efeitos mais intensos no Nordeste e no Sul; o NO₂, no Norte e Nordeste; e o O₃, no Centro-Oeste e no Norte. São achados importantes, mas que ainda precisam de mais investigação.

Além disso, estudos iniciais apontam que a poluição atmosférica pode afetar etapas anteriores à gestação, como a concepção, aumentando o risco de aborto espontâneo e diminuindo o sucesso de tratamentos como a fertilização in vitro.

Infelizmente, a ausência de monitoramento sistemático da qualidade do ar em muitos municípios brasileiros torna o problema invisível e mais difícil de enfrentar.

O que os dados (ainda) não contam: desafios da ciência de dados em saúde no Brasil

A integração entre clima e saúde representa um avanço, mas também tem alguns desafios técnicos. Um deles diz respeito à natureza das bases de dados. As informações ambientais costumam ser disponibilizadas em grades (com base em coordenadas geográficas), os dados de saúde são agregados por municípios. Isso exige uma conversão dos dados climáticos para o mesmo referencial geográfico usado na saúde, geralmente por código dos municípios. Essa transformação envolve procedimentos técnicos com o uso de linguagens de programação como Python, além de conhecimento de georreferenciamento. 

É nesse contexto que a inteligência artificial ganha relevância estratégica. Ferramentas de IA podem automatizar e aprimorar essa etapa de integração de dados, permitindo, por exemplo, a interpolação de dados ambientais em áreas sem monitoramento direto, ou a identificação de padrões espaciais e temporais que não seriam facilmente perceptíveis com métodos tradicionais. Além disso, modelos de aprendizado de máquina são capazes de lidar com a complexidade dos dados heterogêneos, preenchendo lacunas, corrigindo inconsistências e até mesmo propondo inferências baseadas em grandes volumes de informação.

Ou seja, ao combinar ciência de dados, conhecimento interdisciplinar e técnicas de inteligência artificial, é possível superar as barreiras estruturais e técnicas que ainda limitam a produção de conhecimento sobre os impactos das mudanças climáticas na saúde materna e perinatal. Mas, para isso, é fundamental o investimento em infraestrutura digital, capacitação técnica e incentivo à colaboração entre áreas que historicamente trabalharam de forma separada.

Como traduzir dados em ação? O papel do Climaterna para políticas públicas

Apesar da urgência do tema, os efeitos das mudanças climáticas na saúde materna e perinatal ainda são pouco discutidos em políticas públicas. Foi essa lacuna que motivou a criação do grupo de pesquisa Climaterna, um projeto interdisciplinar vinculado ao BI0S, do qual faço parte como pesquisadora associada. 

Com uma plataforma já pensada para reunir todos os dados necessários para análises mais robustas sobre o tema no Brasil. Em breve, disponibilizaremos dashboards interativos que poderão ser utilizados por secretarias de saúde e meio ambiente para apoiar decisões com base em evidências. 

Conclusão: justiça ambiental começa no útero

A emergência climática não é um problema futuro. Ela já existe, impactando vidas e territórios de maneira desigual. E quando os eventos extremos, como altas temperaturas, seca e poluição afetam as mulheres grávidas e seus recém-nascidos, não estamos apenas diante de uma ameaça ambiental, mas de uma urgência de saúde pública. 

Precisamos reconhecer que proteger mães e bebês é uma forma de proteger o futuro, numa visão demográfica, mas também ética. A saúde materna e perinatal deve estar na agenda sobre as mudanças climáticas. E isso só será possível com uma ciência interdisciplinar, políticas comprometidas e uma escuta sensível à toda população, principalmente as mais vulneráveis. 

Apesar disso, políticas públicas pouco integram as agendas de saúde materna com as de meio ambiente ou de enfrentamento à crise climática. É preciso monitorar de forma adequada os impactos do clima sobre os nascimentos e trazer outros aspectos na discussão de mudanças climáticas, pensando nas consequências diretas sobre a saúde materna e perinatal, com foco nas populações mais vulneráveis. 

Pensando em tudo isso, sinto que estou no projeto certo e no momento certo. Ao construir um repositório de dados sobre clima e saúde, o Climaterna poderá monitorar os efeitos das mudanças climáticas e apoiar a formulação de políticas públicas que realmente respondam às necessidades das mães e bebês do Brasil.



Referências 

Conforti, A., Mascia, M., Cioffi, G. et al. Air pollution and female fertility: a systematic review of literature. Reprod Biol Endocrinol 16, 117 (2018). https://doi.org/10.1186/s12958-018-0433-z

Moore, J.P.; Damasceno da Silva, R.M.; Dias, M.A.; Castelhano, F.J.; Hoinaski, L.; Requia, W.J. Ambient air pollution and low birth weight in Brazil: A nationwide study of more than 10 million births between 2001 and 2018. Chemosphere 2024, 366, 143469.

Ir para o topo